Mulheres indígenas baianas criam novo cinema de resistência; conheça filmes

Recontar suas histórias a partir do próprio ponto de vista, transformar dores em arte e romper com estereótipos coloniais são alguns dos pilares do cinema feito por mulheres indígenas na Bahia. Por muito tempo, o cinema brasileiro retratou os povos indígenas através de lentes colonizadas — quase sempre produzidas por pessoas não indígenas e com um viés exótico, folclórico ou marginalizador.Nos últimos anos, no entanto, essa narrativa tem sido transformada por mulheres indígenas que ocupam câmeras, roteiros e direções, levando às telas a potência de seus territórios, memórias e visões de mundo. Não mais através de um olhar colonizador, mas a partir de suas próprias vozes, essas cineastas documentam seus modos de vida tradicionais, preservam suas línguas nativas e tornam acessível a todos a rica história e cultura de seus povos.O cinema indígena no Brasil, em sua essência, surgiu com um forte caráter político. Cineastas indígenas recontam suas próprias histórias, estabelecendo uma conexão histórica entre o passado e o presente, e sublinhando o fato de que, ao longo da história, têm sido tratados como estrangeiros em sua própria terra. Esse cinema, ao visibilizar a luta constante que os povos indígenas enfrentam no país, torna-se um grito de resistência e afirmação.Na Bahia, esse movimento se fortalece com nomes como Nádia Akawã Tupinambá, Sarah Payayá e Edilene Payayá, cineastas que desafiam o apagamento histórico e constroem uma produção audiovisual ancestral, política e afetiva. Em entrevista exclusiva ao Cineinsite A TARDE, as cineastas compartilharam experiências, desafios e sonhos de um movimento audiovisual crescente no estado. 

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Edilene Payayá

Cineasta Edilene Payayá

|  Foto: Arquivo pessoal

A cineasta Edilene Payayá constrói sua obra a partir da retomada histórica de seu povo. “Escrevi um longa-metragem documental que vai retratar a jornada pela retomada Payayá e a cosmovisão deste povo indígena”, explica. A proposta de Edilene é desconstruir a falsa narrativa de que os Payayá foram extintos. “Apesar de termos seguido em silêncio sobre nossas origens, a identidade indígena sempre esteve presente, passada de geração em geração, através dos cantos, modos de ser e viver, e nosso vínculo com a terra, a Yby”, revela.Sua produção é fortemente influenciada pela espiritualidade. A figura da ancestral Maria Gameleira, reverenciada como Yayá Gameleira, é central em seu trabalho. “Ela simboliza a força espiritual que estimulou o recomeço da história Payayá. Sua presença ainda é sentida através da árvore sagrada, a gameleira, que guarda segredos profundos, sendo um ponto de conexão entre o passado e o presente”, conta.A árvore sagrada não é apenas um símbolo, mas um elo vital que conecta a espiritualidade e a resistência cultural de seu povo. “A gameleira se tornou um ícone da nossa resistência, reverenciada em poemas, contos e até na literatura do povo Payayá”, afirma Edilene.

Apesar da diáspora e dos deslocamentos forçados, que nos privaram de nossa territorialidade, e das violências coloniais, que apagaram parte de nossos costumes, crenças e valores, novas relações identitárias emergiram para manter a história viva.

Edilene Payayá

Além dos desafios espirituais e culturais, Edilene enfrenta barreiras práticas, como o acesso a equipamentos e financiamento para suas produções. “A disputa indígena em qualquer segmento é sempre desigual. Para mim, o maior desafio é conseguir material audiovisual, recursos financeiros e poder participar de festivais de cinema. A luta pela visibilidade das nossas produções é constante”, diz ela, destacando ainda o papel fundamental das redes de apoio como a Rede Katahirine, um coletivo criado para fortalecer e visibilizar o trabalho audiovisual das mulheres indígenas do Brasil e da América Latina.Edilene afirma acreditar no poder transformador do audiovisual entre os mais jovens. “O conselho que daria para os jovens é que produzam coisas sérias e relevantes. Utilize o celular, uma ferramenta poderosa, para entrevistar seus bisavós, avós, mães e busquem saber mais sobre sua origem, identidade e cultura”, sugere.Seu trabalho continua a ser uma luta contra as narrativas coloniais que tentam apagar a história dos povos originários. “Nós, povos indígenas, passamos muitos anos tendo nossas histórias narradas por outros, pessoas com pensamento colonial, que não são parte de nosso povo e que colocam nossas vidas como exóticas”, concluiu a cineasta.Sarah Payayá

Cineasta Sarah Goes da Silva

|  Foto: Arquivo pessoal

Para Sarah Goes da Silva, também do povo Payayá, o cinema representa mais do que uma arte, ele é também um processo de cura e reconstrução. “Durante muitos anos, filmes foram feitos sobre nós, mas sempre sob uma ótica externa, de pessoas que nunca enfrentaram as dificuldades históricas que vivemos”, afirma.Para Sarah, a dor e o sofrimento histórico dos povos indígenas devem ser abordados com sensibilidade e sem romantização. “Dói muito, mas é importante mexer nessa ferida, pois essa é a verdade. Estamos reconstruindo a memória para que nossas crianças compreendam a nossa história e saibam como proteger o futuro”, diz.Moradora da Chapada Diamantina, Sarah teve seu primeiro contato com o audiovisual na Escola Livre de Audiovisual (ELA), e nunca mais parou. “Fizemos um filme com celular e um orçamento de apenas 350 reais, e ele foi premiado em Brasília no Festival de Cinema e Cultura Indígena. Fazer cinema sobre assuntos verdadeiramente essenciais para o nosso povo e para a valorização da nossa cultura é maravilhoso”, compartilhou.A escassez de recursos é uma realidade em seu trabalho, mas isso não a impede de continuar sua jornada criativa. “Hoje, só tenho o celular para fazer minhas produções, mas meu sonho é comprar meu próprio equipamento. Quero continuar produzindo, com ou sem edital”, confessa.Sarah também ressalta a importância das leis de incentivo cultural, como as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, que têm sido essenciais para dar visibilidade e recursos às produções indígenas. “Essas leis nos permitiram dar um grande passo, podendo contratar uma equipe qualificada e utilizar equipamentos de qualidade como câmeras e drones. Isso transformou a produção, trazendo resultados incríveis”, destaca.Ela também enfatiza o cuidado ético na produção audiovisual. “Em nossos documentários, temos que respeitar as fronteiras do que é permitido mostrar. Existem rituais, especialmente espirituais, que são fechados, e não podemos invadir essa privacidade. Devemos mostrar apenas o que é permitido e relevante para o nosso povo e o público”, afirma.Em uma sociedade em que grande parte das pessoas visualiza povos indígenas como homogêneos, a cineasta reforça a necessidade de um cinema mais conectado com as realidades locais e as diversas etnias que habitam o território. 

Cada povo tem sua marca cultural única. Somos indígenas sim, mas somos de várias etnias, com costumes e tradições diferentes. A Bahia, por exemplo, é imensa e possui uma grande diversidade.

Sarah Payayá

Nádia Akawã Tupinambá

Cineasta Nádia Akawã Tupinambá

|  Foto: Arquivo pessoal

Nádia Akawã Tupinambá defende o cinema indígena como uma forma de afirmar a presença e a contemporaneidade dos povos originários. “Por muito tempo, os filmes sobre nós foram feitos por outras pessoas, mas agora estamos produzindo os nossos próprios filmes. Isso é essencial, pois mostra que somos capazes de dirigir, roteirizar, produzir e escolher as histórias que queremos contar”, afirma com convicção.

Cineasta, mulher e ainda indígena: é um espaço que era permitido, mas era silenciado. A gente vê as grandes produções sempre com homens e, na maioria das vezes, com pessoas não indígenas. Então, para a gente assumir esse papel de cineasta é um posicionamento, é também mostrar nossa capacidade de fazer.

Nádia Akawã Tupinambá

Para Nádia, a produção audiovisual indígena não se limita a uma simples representação, mas é um ato de resistência e afirmação da identidade. “Temos o sentimento apropriado para falar de nós mesmos. E, ao fazermos isso, mostramos a beleza e a riqueza de nossa cultura, algo que foi negligenciado por muito tempo”, completa.Ela acredita que o cinema indígena deve refletir a atualidade e a diversidade de cada povo. “Apesar de muitos ainda nos verem como pertencentes ao passado, nós estamos aqui, no presente, com uma realidade única. O cinema que fazemos não é sobre um passado distante, mas sobre o que somos agora, sobre o que fazemos, o que produzimos, como vivemos”, explica Nádia. Ela ressalta a importância de retratar a diversidade entre os povos indígenas, especialmente na Bahia, que abriga 30 etnias diferentes. “A Bahia é enorme, e precisamos mostrar a diversidade cultural dentro do estado. Cada povo tem práticas, crenças e modos de vida únicos. O cinema é uma ferramenta poderosa para destacar essa diversidade”, afirma.

O cenário indígena na Bahia tem crescido. Ainda estamos um pouco no anonimato, não há muitas pessoas fazendo cinema, mas existem pequenos grupos produzindo e mostrando suas formas de se ver nas telas. Os documentários que temos feito — e que vários povos também têm produzido — mostram isso.

Nádia Akawã Tupinambá

Por fim, Nádia destaca a importância de dar visibilidade às questões contemporâneas, como a luta pela preservação dos territórios e a revitalização de línguas e práticas culturais. “Estamos trabalhando na revitalização da Língua Tupinambá desde 1996. Nosso primeiro material didático foi desenvolvido ouvindo as lideranças e os anciãos, e isso é um exemplo de como estamos trabalhando para revitalizar nossa cultura e nossa educação. Estamos no século XXI, mas nossa história, nossas práticas, nossos saberes ancestrais continuam vivos e são parte do nosso cotidiano”, conclui Nádia.6 dicas de curtas do cinema indígenaO cinema indígena, em especial os seus curtas, tem ganhado cada vez mais visibilidade na Bahia e em todo o Brasil. No Panorama Internacional Coisa de Cinema deste ano, um dos dias do festival foi inteiramente dedicado às produções de povos originários. Entre os destaques, o filme ‘Ama mba’é Taba Ama’, dirigido por Gal Solaris e Nádia Akawã Tupinambá, venceu o Prêmio Iguale no 8º Laboratório de Montagem (PanLab), garantindo ao longa recursos de acessibilidade, como legendagem descritiva ou Libras. Já ‘Ymburana’, de Mamirawá, com co-direção de Rômulo G. Pankararu e Maria K. Tucumã, foi premiado como melhor curta-metragem na Competitiva Baiana, reforçando o protagonismo indígena no audiovisual.Confira dicas de curtas do cinema indígena para assistir gratuitamente:ESTAMOS VIVOS E ATENTOS: MUTIRÃO PAYAYÁ (2024/BA)

|  Foto: Divulgação

Direção: Edilene Payayá, Sarah Payayá e Alejandro Zywica.Sinopse: O documentário mostra a trajetória do povo Payayá, contada pelos descendentes herdeiros de uma cultura apagada da história. Os Payayá foram considerados extintos por séculos, até algumas décadas atrás, quando descendentes deste povo originário do interior baiano, empreenderam a epopeia da retomada da identidade e do território.Onde assistir: Gratuito no streaming Cine Caatinga.

ORÉ PAYAYÁ (2024/BA)

|  Foto: Divulgação

Direção: Edilene Payayá, Sarah Payayá e Alejandro Zywica.Sinopse: Conta a história do povo Payayá desde as suas origens ancestrais até o presente de lutas e desafios, passando pelos tempos de diáspora. Os Payayá, originários do interior do estado da Bahia tiveram sua cultura desprezada pela versão oficial da história, contada pelos colonizadores. Porém os descendentes desse bravo povo guerreiro lutam pela afirmação da sua identidade e a retomada dos seus princípios étnicos. Havendo re-conquistado de forma pacífica parte do antigo território nas imediações da Cabeceira do Rio Utinga, o povo Payayá vive determinado na luta para subsistir como tal, unido pela cultura ancestral, buscando valorizar os recursos naturais e a vida na Chapada Diamantina e na Terra.Onde assistir: Gratuito no YouTube.

NOSSOS ESPÍRITOS SEGUEM CHEGANDO (2021/RS)

|  Foto: Divulgação

Direção: Ariel Kuaray Poty Ortega, Bruno HuyerSinopse: O curta-metragem Nossos espíritos seguem chegando – Nhe’ẽ kuery jogueru teri mostra Tekoa Ko’eju, Pará Yxapy, indígena Mbya Guarani, dedicando os primeiros cuidados a seu filho, ainda no ventre. O filme mostra as reflexões junto com seus parentes, acerca dos sentidos de sua gravidez em meio a pandemia de COVID-19 no Brasil e acompanha os dias antes de Pará dar à luz, as conversas entre as mulheres próximas, a preparação das comidas e das ervas.Onde assistir: Gratuito no Embaúba Play.

TEKO HAXY – SER IMPERFEITA (2018/GO)

|  Foto: Divulgação

Direção: Patrícia Yxapy e Sophia Pinheiro.Sinopse: Teko Haxy é um documentário experimental, média-metragem, fruto de um encontro e da amizade entre uma cineasta indígena e uma artista visual e antropóloga não-indígena. No filme, gravado entre o Rio Grande do Sul (Aldeia Ko’enju, em São Miguel das Missões) e Goiás, as duas mulheres trocam vídeo-cartas e revelam o processo de filmar uma à outra, compartilhando a intimidade, os conflitos e as questões que as atravessam material e espiritualmente.Onde assistir: Gratuito no Embaúba Play.

GAVI: A VOZ DO BARRO (2022/PR)

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Direção e roteiro:  Ana Letícia Meira Schweig, Angélica Domingos, Cleber kronun de Almeida, Eduardo Santos Schaan, Geórgia de Macedo Garcia, Gilda Wankyly Kuita, Iracema Gãh Té Nascimento, Kassiane Schwingel, Marcus A. S. Wittmann, Nyg Kuita e Vini Albernaz.Sinopse: Animação curta-metragem criada através das memórias narradas por Gilda Wankyly Kuita e Iracema Gãh Té Nascimento, lideranças indígenas no sul do Brasil. As imagens e os sons foram captados na Terra Indígena Kaingang Apucaraninha (PR), durante o encontro de mulheres “Ga vī: a voz do barro, conversando com a terra”, 2021. O filme conta histórias Kaingang sobre a tradição da cerâmica, o barro, a ancestralidade e as cosmovisões a partir das vozes anciãs.Onde assistir: Gratuito no YouTube.

TOPAWA (2019/PA)

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Direção: Kamikia Kisedje e Simone Giovine.Sinopse: O filme traz depoimentos de mulheres da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, sobre os primeiros contatos com os homens brancos, enquanto confeccionam redes e cestas a partir da palmeira de tucum.Onde assistir: Gratuito no YouTube.

*Sob supervisão de Bianca Carneiro

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