Sonho de 70 anos, Lula e Fátima entregam Barragem de Oiticica no RN

“A seca ensinou a gente a esperar. Agora, a gente quer aprender a viver com a água”. Seu João é o autor das palavras que abrem essa reportagem. Agricultor de Oiticica, 74 anos de idade, ele observava o reservatório de água quando chegamos próximos para conversar. As duas frases curtas ditas por João são filosofia pura numa região cuja seca ensinou aos mais pobres a medida da espera.

Luta de mais de 70 anos do povo do Seridó, com ordem de serviço assinada pela então presidenta Dilma Rousseff em junho de 2013, a Barragem de Oiticica foi entregue nesta quarta-feira (19), ao povo do Seridó, na comunidade de Nova Barra, em Jucurutu (RN).

A solenidade histórica contou a presença do presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, da governadora do Rio Grande do Norte Fátima Bezerra, além da senadora Zenaide Maia (PSD), os deputados federais Fernando Mineiro e Natália Bonavides, deputados estaduais, representantes da igreja, de movimentos populares e várias outras autoridades.

A barragem vai beneficiar 330 mil pessoas de 43 municípios da região e é a principal obra do Complexo Hidrossocial Oiticica, que inclui a comunidade Nova Barra de Santana, toda saneada; três agrovilas para assentamento de trabalhadores rurais sem terra e de famílias que viviam nas áreas inundáveis do reservatório; além da construção de estradas de acesso às localidades rurais e de rede de energia elétrica para consumo domiciliar e irrigação.

Com capacidade para armazenar 742,6 milhões de metros cúbicos de água, o reservatório é o segundo maior do Rio Grande do Norte e integra o Projeto de Integração do Rio São Francisco. Além de abastecer diretamente 43 municípios, alcançando 330 mil pessoas, a obra permitindo a produção de culturas irrigadas, perenizando o curso do rio Piranhas/Açu e servindo como escudo para o controle de enchentes na região.

A inauguração aconteceu em um dia carregado de simbolismo para o sertanejo: o Dia de São José. Padroeiro das chuvas, São José representa a fé e a esperança do povo do semiárido, que há séculos olha para o céu e confia na chegada da água. E, desta vez, a promessa se cumpriu, não na forma da chuva, mas na concretização de uma luta histórica pela segurança hídrica.

A entrega da obra trouxe à tona lembranças da infância de quem ainda sofre os traumas da convivência com a seca. Filho de retirantes de Caetés, no interior de Pernambuco, o presidente Lula viveu drama semelhante ao de milhares de sertanejos potiguares que hoje comemoram o sonho da barragem.

Em seu discurso, Lula lembrou emocionado do tempo em que, na condição de nordestino, ainda menino, tinha como atribuição buscar água no açude para o gasto doméstico da família. E hoje, quase 70 anos depois, contribuía para tirar do papel o projeto de levar água do Rio São Francisco voltado para garantir segurança hídrica no sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

“Quando fui eleito presidente da República, em 2003, eu tinha na cabeça provar que a gente poderia fazer aquilo que Dom Pedro, no tempo do Império, tentou e não conseguiu. Resolvi que era possível trazer a água do Rio São Francisco para aliviar o sofrimento 12 milhões de nordestinos. Somente quem viveu a experiência de tomar água de barreiro, com caramujo, sabe a importância da água para o Nordeste brasileiro. Então, assumi a responsabilidade e hoje eu estou aqui inaugurando um dos últimos trechos e uma das últimas obras da transposição”, destacou o presidente, enfatizando que a seca é um fenômeno da natureza, “mas a morte de pessoas e animais, de gente indo embora para São Paulo e para o Sul do país fugindo da seca, era consequência da irresponsabilidade de quem governava o país.”

Lula e Fátima vivenciaram os efeitos da seca na infância e hoje celebra a obra / Foto: Vladmir Alexandre

A governadora Fátima Bezerra definiu o Complexo Hidrossocial Oiticica como um marco de esperança e dignidade para o povo potiguar. E fez coro ao presidente Lula ao lembrar de traumas do passado ligados ao fenômeno da seca.

Eu, menina em Nova Palmeira; Lula, menino em Caetés, conhecemos a seca de perto. Lembro de minha mãe nos acordando de madrugada, no período de seca brava, para ir buscar água numa cacimbinha para matar a sede. Por isso digo e repito: estamos vivendo um momento muito especial para a vida do sertanejo, do povo do Seridó, do nosso Rio Grande do Norte. Ver esta barragem ser entregue hoje, a grandiosidade dela, é algo que nos deixam muito emocionados porque passa um filme em minha cabeça”, afirmou a governadora, relembrando outra cena mais dramática, comum no passado:

“A seca não era apenas o pote vazio. Era a fome. Era o drama de uma mãe amorosa como a minha, no tempo da estiagem dura, chegar para mim e dizer que não podia repetir o prato porque se fizesse, meu irmão não teria o que comer”, reforçou Fátima, fazendo uma homenagem “às mães que sofreram tanto, no passado, com o flagelo da seca”, às pessoas que lutaram pela obra e aos servidores que trabalharam para que a projeto fosse concretizado.  

Igreja e movimentos populares

Ex-arcebispo de Natal, Dom Jaime teve papel importante na barragem / foto: Vlademir Alexandre

A caminho da Barragem de Oiticica, o deputado federal Fernando Mineiro encontrou no município de Santa Cruz dois personagens importantes para que a obra virasse realidade: o arcebispo emérito de Natal, Dom Jaime Vieira, e o ex-secretário de Estado de Recursos Hídricos e Meio Ambiente, Josemar Azevedo, que assinou o contrato do primeiro projeto básico para a barragem.

O parlamentar definiu a data como “um dia histórico” e gravou um vídeo com o arcebispo e o ex-secretário contando parte do percurso institucional da obra.

Na visão do ex-secretário Josemar Azevedo, uma das principais autoridades em saneamento e água do país, a barragem de Oiticica “vai ressuscitar uma coisa importante para o Seridó: os perímetros irrigados (área agrícola com infraestrutura para irrigação) que hoje não produz mais. Não só em Cruzeta, mas também em Sabugi e Caicó. Hoje a barragem tem projeto e poderemos abastecer o açude Itans com as águas de Oiticica. Na secretaria de Recursos hídricos há projeto para a integração das bacias”, explicou.

Durante a cerimônia, o arcebispo emérito da Arquidiocese de Natal destacou a importância histórica da obra e o papel fundamental da luta popular em sua concretização.

“A luta por essa barragem começou em 1953. Setenta e quatro anos depois, estamos aqui vendo essa obra se tornar realidade. Dou graças a Deus por ter participado desse processo e por presenciar esse momento tão significativo. Hoje, o povo do Seridó recebe a Barragem de Oiticica pelas mãos do presidente Lula, uma conquista fruto das mobilizações comunitárias e do compromisso com projetos públicos de grande impacto. Aqui, ficou evidente que, junto à construção de uma grande infraestrutura, é essencial garantir um projeto social. Foi o que aconteceu em Oiticica. As famílias saíram de suas terras, a água inundará o local, mas elas foram reassentadas com dignidade, em um espaço com igreja, praça, moradias e toda a infraestrutura necessária”.

Uma cidade submersa, um novo começo

Agrovila em Jucurutu recriada após projeto da barragem virar realidade / foto: Consórcio QS Oiticica

Para que Oiticica existisse, foi preciso deslocar famílias e reconstruir vidas. O antigo povoado de Barra de Santana ficou submerso, e em seu lugar nasceu Nova Barra de Santana, uma cidade planejada para receber seus moradores. A nova comunidade conta com 176 casas permutadas, além de 41 destinadas a famílias sem teto e outras 33 em construção para esse mesmo público. A infraestrutura foi completamente transformada, incluindo a construção de um ginásio de esportes, creche, postos de saúde, pavimentação completa e um moderno sistema de distribuição de energia. O saneamento básico, antes inexistente, agora é realidade, assim como o planejamento urbano, que trouxe organização e melhores condições de vida para os moradores.

Foram construídos, ainda, 128 km de estrada de contorno, ligando Jucurutu, Jardim de Piranhas e todas as cidades da bacia hidrográfica. Além disso, foram criadas três agrovilas para reassentar agricultores afetados pela obra.

O agricultor Francisco Evaldo de Souza, 44 anos, se orgulha da residência conquistada. Morador da região desde a infância, ele conta que vivia em casa de taipa, à sombra de uma oiticica, até ser realocado para a Agrovila São Raimundo. “A gente não tinha casa e agora tem. Morávamos debaixo de um pé de pau. Às vezes, em casa alugada, não tínhamos como pagar e precisávamos sair. Agora, temos a nossa casa”, diz.

O diretor-presidente do Instituto de Gestão das Águas do Rio Grande do Norte (IGARN), Procópio Lucena, descreveu o momento como transformador para o Seridó.

“Hoje é um dia inesquecível. A história do Seridó está sendo reescrita. Desde 1950, esse povo sonhava com essa barragem. Foram décadas de luta, de mobilização, de espera. E agora, com a união entre governo e sociedade, tornamos essa obra uma realidade. Mas Oiticica não é apenas concreto e ferro. É um complexo social. Trouxe desenvolvimento, segurança hídrica, moradia digna e um futuro promissor para essa comunidade. A fé de São José e a força do nosso povo fizeram esse dia acontecer”.

Especialistas na questão hídrica, Procópio Lucena luta há décadas pela obra / foto: Vlademir Alexandre

O trabalho foi realizado pelo Governo do Estado com a participação da igreja, do movimento sindical e dos movimentos de atingidos. Um acordo de justiça judicial foi feito para que a obra, que havia ficado parada por 120 dias antes do governo Fátima, não tivesse mais interrupções. “Isso foi possível graças ao diálogo, ao exercício da democracia, à luta popular e à decisão política do governo de garantir direitos, que avançaram significativamente ao longo desse processo”, explicou Procópio.

O desafio da distribuição da água

Oiticica abre uma nova etapa para o sertão, mas também impõe desafios. A barragem tem potencial para irrigar até 10 mil hectares, impulsionando a agricultura e a pecuária. No entanto, a gestão e distribuição da água serão determinantes para garantir que o benefício chegue a todos.

O secretário estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Paulo Varella, destacou a importância da obra para a região.

“Hoje é um marco que abre um novo horizonte para a segurança hídrica do nosso estado. A barragem de Oiticica agora se incorpora ao sistema de abastecimento do Seridó, formando a grande caixa d’água da região. Mas o desafio continua: agora, precisamos transformar essa água em desenvolvimento, em produção, em qualidade de vida para nosso povo”.

A secretária estadual de Turismo, Marina Dias Marinho, reforçou que a barragem também impactará o setor turístico e cultural do estado.

“Essa não é apenas uma obra de segurança hídrica, é uma obra de dignidade. Um governo popular coloca as pessoas no centro das suas ações, garantindo que o desenvolvimento chegue a todos. E o turismo do interior, tão valorizado no nosso estado, também se fortalece com essa nova realidade. O Geoparque Seridó, por exemplo, ganha um reforço com essa estrutura, ampliando as oportunidades para a economia local”.

Mais investimentos em segurança hídrica

Além da inauguração da barragem, foi assinada a ordem de serviço para a construção da Adutora do Agreste Potiguar, que ampliará o abastecimento para 38 municípios. O Governo do Estado destacou também a continuidade de projetos como o Ramal Apodi e o Projeto Seridó, reforçando o compromisso com a segurança hídrica do Rio Grande do Norte.

O sertão que sempre resistiu, agora renasce.

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