Os brasileiros se cansaram de servir aos políticos

Texto de Nuno Vasconcellos:

“Muita gente acredita — e em alguns países do mundo isso até pode ser verdade — que o Estado existe para servir à sociedade. Dia após dia, no entanto, fica cada vez mais claro que esse princípio não se aplica a todos os lugares. No Brasil, por exemplo, a sociedade é que parece existir para servir ao Estado. A impressão que se tem é a de que as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário sempre encontram uma maneira de tirar um pouco mais dos cidadãos e não estão nem aí para os efeitos das decisões que tomam em seu próprio benefício.

Isso mesmo. Uma demonstração eloquente nesse sentido é uma tentativa de acordo que vem evoluindo a passos acelerados na Câmara dos Deputados e que, teoricamente, se destina a atender a uma exigência do Supremo Tribunal Federal. A situação é a seguinte: em agosto de 2023, o STF, atendendo a uma solicitação do estado do Pará, determinou que a Câmara, para as eleições de 2026, redistribua o número de assentos no plenário levanto em conta a proporcionalidade da população de cada estado medida pelo Censo Demográfico de 2022. Isso acarretaria a alteração do número de representes de algumas bancadas. Algumas perderiam. Outras, ganhariam deputados. No final, a Casa permaneceria com os mesmos 513 parlamentares.

Antes de falar da nova configuração, convém tecer algumas considerações sobre o tamanho atual das bancadas. Ela segue os critérios enviesados de proporcionalidade impostos pelo governo militar no Pacote de Abril de 1977 — quando o general Ernesto Geisel, preocupado com o avanço eleitoral da oposição nos estados mais desenvolvidos, resolveu criar um mecanismo que garantisse na marra a maioria no parlamento do partido de sustentação do governo, a Arena. Além de criar os senadores biônicos, eleitos pela via indireta, impôs uma fórmula de preenchimento das 420 cadeiras que a Câmara tinha na época simplesmente reduzindo a representação dos estados do Sudeste, onde a tendência oposicionista era mais acentuada, e aumentando as bancadas dos pequenos estados — sempre mais fiéis ao governo de ocasião.

Por conveniência da maioria dos parlamentares (e não da sociedade brasileira), o modelo sobreviveu à redemocratização. E o número de deputados foi sendo ampliado até parar, já nos anos 1990, nos atuais 513 parlamentares. A distorção básica foi mantida e o voto dos eleitores dos estados menores permaneceu valendo muito mais do que o dos cidadãos dos estados maiores.

Numa conta básica, considerando-se o número de eleitores de cada unidade da Federação e o tamanho das bancadas na eleição passada, de 2022, enquanto foram necessários 366 mil paulistas e 205 mil fluminenses para formar o coeficiente para eleger um único deputado federal, esse número caiu para 54 mil eleitores no Amapá e apenas 37 mil em Roraima. Isso faz com que, numa conta rasa, o voto de um eleitor em Roraima valha dez vezes mais do que valeria em São Paulo.

Uma democracia que zela pelo nome que carrega e leva ao pé da letra o princípio de que todos são iguais perante a lei, jamais permitiria uma distorção como essa.

A resposta a quem ousa apontar esse tipo de distorção deixa claro o populismo que orienta a política brasileira. Quem defende o modelo imposto pela Ditadura Militar atribui ao cálculo que dá mais peso aos estados de menor densidade populacional é reduzir as desigualdades regionais. Pura balela! Por definição, a Casa encarregada de defender os interesses das unidades da Federação é o Senado. Ali, cada estado e mais o Distrito Federal, independentemente do tamanho de sua população, conta com três representantes. À Câmara, a princípio, cabe representar o povo — e, para fazer isso direito, o voto de um eleitor do Rio de Janeiro deveria ter o mesmo peso de um eleitor do Acre, do Amapá, de Roraima ou dos outros estados beneficiados pela legislação.

Seja como for, e sem mencionar a necessidade de corrigir essa distorção, o STF exigiu que a Câmara se adequasse à realidade populacional do último censo. Pelo novo critério, o Estado que mais perderia cadeiras seria o do Rio de Janeiro — que veria sua bancada se reduzir dos atuais 46 para 42 deputados. Os que mais ganhariam seriam o Pará, que iria de 17 para 21 e Santa Catarina, que pularia de 16 para 20 parlamentares.

Acontece que os deputados, criativos como sempre, tiveram uma ideia que, para eles, deve ter parecido genial! Ao invés de tirar de uns e dar cadeiras para outros, resolveram alcançar o equilíbrio pelo aumento da quantidade de deputados. Isso mesmo! O novo presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos/PB), assim que o carnaval passar, tentará encaminhar um acordo para cumprir a decisão do STF. Ao invés de redistribuir as bancadas pelos mesmos 513 assentos previstos na lei atual, ele pretende ampliar para 527 a quantidade de representantes na Casa.

Apenas a título de comparação: os Estados Unidos têm uma população de mais ou menos 350 milhões de habitantes — enquanto a do Brasil é de pouco mais de 200 milhões. Enquanto o país norte-americano conta com 50 estados, o Brasil tem 26 estados e o Distrito Federal. Ainda assim, e enquanto o Brasil fala em aumentar a bancada para 527 deputadas e deputados, os Estados Unidos seguem firmes com seus 435 representantes.

Os defensores do aumento do número de cadeiras insistem numa linha de argumentação que insulta a inteligência de qualquer cidadão que se preocupe com o peso do Estado gastador nas costas da sociedade contribuinte. Para começo de conversa, eles juram de pés juntos que os novos 14 parlamentares que terão lugar na Casa não terão qualquer impacto sobre os gastos públicos.

Segundo Suas Excelências, o Orçamento do Poder Legislativo cobrirá os salários dos novos deputados e de seus assessores, bancará a gasolina de seus carros, pagará as passagens aéreas que eles usam para “retornar às suas bases” e cobrirá as despesas que os deputados sempre dão um jeito de inventar. Para eles, não haverá, aumento, apenas a realocação de gastos que já estavam previstos.  

Antes de cair na gargalhada com essa anedota de gosto duvidoso, basta fazer uma conta simples para constatar que esse argumento não se sustenta. Cada um dos 14 novos deputados terá, assim como os 513 atuais, o direito de apresentar emendas individuais impositivas. São aquelas de pagamento obrigatório pelo Caixa Federal, sem qualquer discussão ou fiscalização, no valor de R$ 37,9 milhões por ano — ou mais de R$ 150 milhões ao longo do mandato. Esse dinheiro, como se sabe, não sai do orçamento do Legislativo, mas da parte do Orçamento da União destinada a investimentos.

Portanto…”

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