A Contradição do Afoxé Filhos de Gandhy: Uma Análise da Exclusão de Homens Trans

O Afoxé Filhos de Gandhy, tradicionalmente reconhecido por sua luta pela valorização da cultura afro-brasileira, enfrenta uma contradição importante ao não aceitar homens trans em seu bloco. Esta análise crítica busca abordar essa exclusão a partir de uma perspectiva dialética, refletindo sobre as implicações sociais, culturais e políticas dessa postura, especialmente em um contexto de luta pela inclusão e igualdade.

Os afoxés surgiram como uma forma de resistência cultural durante um período de opressão e marginalização da cultura afro-brasileira, sendo fundamentais na preservação e afirmação das tradições africanas no Brasil. No entanto, é importante entender que essa resistência não é homogênea, pois, dentro da cultura negra, existem diferentes grupos e perspectivas sobre identidade e inclusão. As variadas experiências sociais e históricas das comunidades afro-brasileiras geram visões distintas sobre o que significa ser negro, qual a relação com as tradições e como lidar com questões de gênero e sexualidade. Assim, embora os afoxés desempenhem um papel vital na luta pela valorização e preservação da cultura afro-brasileira, as questões internas de inclusão e identidade dentro desses grupos também refletem as complexas dinâmicas sociais e políticas que moldam a sociedade brasileira como um todo.

O movimento afro-brasileiro é caracterizado pela constante luta pela valorização da identidade e pelo reconhecimento das tradições culturais africanas no Brasil, frequentemente desafiando as estruturas de opressão que buscam marginalizar as comunidades negras. No entanto, ao excluir homens trans, o Afoxé Filhos de Gandhy, em seu esforço de afirmação cultural, acaba contradizendo os próprios princípios de inclusão e resistência aos processos de opressão. Ao reforçar normas rígidas de gênero, o grupo não apenas limita a diversidade interna da comunidade afro-brasileira, mas também perpetua formas de discriminação que, embora historicamente voltadas contra os negros, agora se voltam contra pessoas trans, um grupo que também sofre com a marginalização e a violência estrutural. Essa exclusão evidencia as complexas intersecções entre raça, gênero e identidade, refletindo uma tensão interna no movimento afro-brasileiro entre a preservação das tradições e a necessidade de adaptação às demandas de inclusão e diversidade.

A análise marxista se fundamenta na dialética, que visa compreender as contradições sociais e como elas se manifestam nas relações de poder, destacando as dinâmicas de exploração e opressão que estruturam a sociedade. Dentro desse contexto, a exclusão de homens trans do Afoxé Filhos de Gandhy configura uma contradição interna à própria luta do bloco, que se posiciona como um movimento de resistência e valorização da cultura afro-brasileira. O bloco, ao adotar uma postura excludente, perpetua normas rígidas de gênero que são também formas de opressão, contradizendo seu discurso de inclusão e universalidade. Para uma verdadeira luta emancipatória, que busque a justiça social e a igualdade, é fundamental que a resistência cultural, como a proposta pelos afoxés, seja também um espaço de acolhimento e reconhecimento das diversas identidades que compõem a comunidade afro-brasileira. Assim, a exclusão de pessoas trans, especialmente dentro de um movimento que deveria ser inclusivo, reflete uma tensão que precisa ser abordada de maneira crítica, com o objetivo de superar as desigualdades que existem dentro da própria luta pela liberdade e pelo reconhecimento.

A teoria interseccional enfatiza como diferentes formas de opressão estão interconectadas e como elas se manifestam de maneira única para indivíduos que pertencem a múltiplas identidades marginalizadas. A exclusão de homens trans pelo Afoxé Filhos de Gandhy evidencia uma limitação na compreensão dessas complexas intersecções, ao não reconhecer a diversidade de identidades presentes na luta afro-brasileira. Ao focar exclusivamente em uma visão binária e tradicional de gênero, o bloco acaba restringindo a abrangência de sua luta, que deveria ser inclusiva e acolhedora de todas as formas de identidade dentro da comunidade negra. Esse posicionamento reflete uma falha em perceber a necessidade de expandir a luta pela liberdade e pelo reconhecimento para além da luta racial, incluindo também a diversidade de gênero, fundamental para uma verdadeira emancipação social.

A manutenção de normas de gênero tradicionais dentro do bloco reflete uma resistência à modernização das identidades e à inclusão de novas perspectivas. Essa visão conservadora pode ser entendida como uma forma de retrocesso, que entra em contradição com a proposta de emancipação cultural do movimento, ao limitar a liberdade de expressão e a diversidade de identidades dentro da comunidade afro-brasileira.

O capitalismo não se limita à exploração econômica, mas também perpetua diversas formas de opressão social, estruturando relações de poder que favorecem certos grupos em detrimento de outros. No contexto do Afoxé Filhos de Gandhy, a exclusão de homens trans pode ser vista como uma maneira de preservar uma hierarquia de gênero e identidade que mantém o status quo, marginalizando aqueles que não se encaixam nos padrões tradicionais. Essa postura não só reflete as tensões internas da própria cultura afro-brasileira, como também ressoa com as dinâmicas de exclusão e opressão que o capitalismo reforça na sociedade em geral. Ao manter essas barreiras, o bloco contribui para a perpetuação de uma estrutura social desigual, onde apenas certos indivíduos têm acesso ao reconhecimento e ao pertencimento, enquanto outros são sistematicamente marginalizados. Assim, a exclusão de pessoas trans no Afoxé Filhos de Gandhy pode ser vista como uma manifestação das lógicas capitalistas de segregação e dominação, que restringem a verdadeira liberdade e igualdade de todos os membros da comunidade.

A luta de classes é um conceito central na análise que faço, pois revela como as estruturas de poder e privilégio operam para manter desigualdades dentro de qualquer sociedade. No contexto do Afoxé Filhos de Gandhy, a exclusão de homens trans pode ser vista como uma estratégia para reforçar uma classe hegemônica dentro do movimento afro-brasileiro, que opera com uma visão estreita e tradicional das identidades de gênero. Ao não reconhecer a pluralidade de experiências e identidades dentro da comunidade negra, essa exclusão perpetua uma hierarquia que marginaliza aqueles que fogem dos padrões normativos, como os homens trans. Essa postura pode ser interpretada como um reflexo das dinâmicas de poder presentes na sociedade em geral, onde os grupos dominantes impõem suas visões e normas, silenciando outras vozes e experiências. Assim, a exclusão de pessoas trans dentro do movimento afro-brasileiro não apenas limita a própria luta pela igualdade racial, mas também reforça a opressão de gênero, contribuindo para a perpetuação de um sistema de classe que favorece alguns enquanto marginaliza outros. Para que a verdadeira emancipação ocorra, é necessário que o movimento afro-brasileiro amplie sua luta, acolhendo todas as identidades e experiências, sem reproduzir as mesmas estruturas de exclusão e discriminação que combate.

A valorização da tradição é, sem dúvida, um elemento fundamental para a preservação da identidade cultural e para a resistência das comunidades afro-brasileiras diante da opressão histórica. No entanto, é crucial que essa valorização não se torne um obstáculo à inclusão e à evolução das práticas culturais. O Afoxé Filhos de Gandhy, como um importante representante da luta pela afirmação da cultura afro-brasileira, deve refletir sobre como suas tradições estão sendo mantidas e questionar se, ao preservar certos aspectos de seu legado, está inadvertidamente contribuindo para a perpetuação de formas de exclusão e opressão. A tradição não deve ser vista como algo estático ou imutável; ela deve ser constantemente revisitada e reinterpretada, para garantir que esteja alinhada com os princípios de igualdade, respeito e liberdade para todos, independentemente de gênero, identidade ou orientação. Assim, o Afoxé deve se questionar se suas práticas estão efetivamente promovendo a libertação dos indivíduos, ou se, ao contrário, estão restringindo o potencial de transformação social e cultural que caracteriza a verdadeira emancipação.

A resistência cultural deve ser inclusiva, acolhendo todos os indivíduos que se identificam com a cultura afro-brasileira, independentemente de suas identidades de gênero. A exclusão de homens trans enfraquece essa resistência, pois cria divisões internas no movimento e limita a capacidade de fortalecer a luta pela igualdade e liberdade. Para que a resistência cultural seja verdadeira e eficaz, é fundamental que ela abrace a diversidade, reconhecendo a pluralidade de experiências e identidades que enriquecem a cultura afro-brasileira.

O Afoxé Filhos de Gandhy tem a oportunidade de promover um diálogo interno sobre identidades de gênero, o que poderia resultar em uma compreensão mais profunda das realidades vividas por homens trans e pessoas não binárias. Esse processo de reflexão e aprendizado é essencial para expandir a inclusão dentro do movimento, reconhecendo as diversas identidades que também fazem parte da luta pela valorização da cultura afro-brasileira.

Uma crítica à exclusão pode surgir de dentro do próprio movimento, com vozes dissidentes questionando as normas de gênero que estão sendo perpetuadas. Esse tipo de questionamento interno é fundamental para desafiar a lógica que sustenta a exclusão e promover uma maior reflexão sobre a necessidade de adaptação e inclusão dentro do movimento.

A verdadeira emancipação só pode ser alcançada quando todas as vozes são ouvidas e incluídas. A luta contra a opressão deve ser abrangente, abrangendo não apenas questões de classe, mas também de gênero e raça, como uma forma de romper as múltiplas camadas de exploração e marginalização. Como Karl Marx afirmou, “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” (Marx, 1844), o que implica que uma luta genuína pela liberdade e igualdade deve envolver a superação das diversas formas de opressão que afetam diferentes grupos sociais simultaneamente, buscando a verdadeira justiça social para todos.

A exclusão de homens trans não só marginaliza esses indivíduos, mas também enfraquece a essência da solidariedade dentro do movimento, ao sugerir que apenas certas identidades são dignas de pertencimento e apoio. Esse tipo de exclusão compromete os valores de inclusão e igualdade que deveriam ser centrais em qualquer luta contra a opressão. Além disso, transmite uma mensagem contraditória: ao lutar pela liberdade e pelo reconhecimento de uma cultura afro-brasileira, o movimento acaba perpetuando formas de discriminação que limitam o alcance da sua própria emancipação, excluindo justamente aqueles que mais precisam de apoio. Para que a solidariedade seja genuína, ela precisa ser ampla e acolher todas as identidades, sem reforçar divisões dentro da própria luta.

Para que o Afoxé Filhos de Gandhy cumpra de fato seu papel de resistência, é essencial que o movimento passe por uma transformação interna que permita a inclusão e aceitação de todas as identidades. Isso envolve uma reflexão profunda sobre as normas estabelecidas e a disposição para questionar práticas que, mesmo que tradicionalmente enraizadas, podem não mais refletir os valores de emancipação e igualdade que deveriam nortear a luta. A inclusão de homens trans e pessoas não binárias no Afoxé não deve ser vista apenas como um gesto simbólico, mas como um passo fundamental para garantir que o movimento se mantenha fiel ao seu compromisso com a liberdade e o reconhecimento de todas as formas de identidade dentro da cultura afro-brasileira. A verdadeira resistência cultural precisa ser plural, abraçando as múltiplas identidades que compõem a sociedade, sem excluir ninguém, e fortalecer a luta por uma sociedade mais justa e igualitária para todos.

O futuro do Afoxé Filhos de Gandhy depende, em grande parte, de sua capacidade de se adaptar às mudanças sociais e culturais que vêm redefinindo as dinâmicas de identidade na sociedade contemporânea. À medida que a compreensão sobre gênero, sexualidade e outras questões sociais evolui, o movimento precisa reconhecer a pluralidade das identidades que o compõem, abraçando a diversidade em suas múltiplas formas. Isso não significa abandonar suas tradições, mas, sim, reinterpretá-las de forma que incluam as novas realidades e desafios que surgem, ampliando seu alcance e fortalecendo sua resistência. A aceitação de diferentes identidades, incluindo homens trans e pessoas não binárias, é um passo crucial para que o Afoxé mantenha sua relevância em um mundo que exige mais inclusão, respeito e equidade. Ao fazer isso, o bloco não apenas preservará sua história de luta e resistência, mas também contribuirá para uma sociedade mais justa e representativa, onde todos possam se sentir pertencentes, sem exceções.

As novas gerações estão cada vez mais conscientes das questões de gênero, identidade e diversidade, buscando espaços que reflitam e respeitem essas transformações. O Afoxé Filhos de Gandhy, como um movimento cultural de resistência, deve ouvir essas vozes emergentes e se reconfigurar para continuar sendo relevante em um mundo em constante mudança. Isso implica em acolher a pluralidade das identidades que fazem parte da sociedade contemporânea e repensar suas práticas, para que o movimento se mantenha alinhado com os valores de inclusão, respeito e liberdade. Ao adaptar-se a essas novas perspectivas, o Afoxé não só fortalecerá sua conexão com as gerações mais jovens, mas também ampliará sua capacidade de promover uma luta mais abrangente pela justiça social e cultural.

A inclusão de homens trans é uma parte fundamental da luta mais ampla pela igualdade e pelo respeito à dignidade humana. O Afoxé Filhos de Gandhy, enquanto movimento cultural importante, não pode se isolar em suas tradições sem levar em conta as demandas contemporâneas por justiça social e equidade. É essencial que o Afoxé reflita sobre a necessidade de adaptação às novas realidades e abra espaço para todas as identidades, incluindo homens trans, para fortalecer sua luta pela liberdade e por um Brasil mais justo e inclusivo.

A exclusão de homens trans pelo Afoxé Filhos de Gandhy é uma contradição que exige uma análise crítica e dialética, pois limita a verdadeira emancipação e inclusão dentro do movimento. Como Rosa Luxemburgo destacou, “a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de maneira diferente” (Luxemburgo, 2005), e essa visão nos chama a refletir sobre como as práticas do Afoxé podem reforçar barreiras e desigualdades. O movimento precisa reconhecer que a luta pela liberdade e pela justiça social deve ser inclusiva e abrangente, permitindo que todos, independentemente de sua identidade de gênero, se sintam parte dessa resistência cultural. Para que o Afoxé cumpra sua missão de transformação, é necessário revisar suas tradições e abrir espaço para a pluralidade, fortalecendo a luta por uma emancipação genuína e sem exclusões.

Após a repercussão negativa sobre a exclusão de homens trans, o Afoxé Filhos de Gandhy decidiu retirar a restrição que permitia apenas homens cis em seu bloco, sinalizando um movimento importante de reflexão e mudança (embora que possa também ter sido por pressão social refletida no patrocínio do grupo). Esse momento é um chamado à ação, para que o Afoxé reexamine suas políticas e abra espaço para um diálogo mais inclusivo e transformador, que reflita a verdadeira diversidade da cultura afro-brasileira. Como afirma a teórica feminista Angela Davis, “a luta pela liberdade é uma luta pela emancipação de todos os indivíduos, sem distinção” (Davis, 1981). Assim, a verdadeira luta pela cultura deve ser inseparável da luta pela dignidade e igualdade de todas as pessoas, reconhecendo e celebrando as múltiplas identidades que a compõem.

Fonte:

CARTACAPITAL. Bloco Filhos de Gandhy tira regra que proibia homens trans no desfile. CartaCapital, 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/bloco-filhos-de-gandhy-tira-regra-que-proibia-homens-trans-no-desfile/. Acesso em: 26 fev. 2025.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

LUXEMBURGO, Rosa. A Revolução Russa. 2005. Disponível em: https://rosalux.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Rosa_Luxemburgo_-Revolucao_Russa-_para_baixar.pdf Acesso em: 24/02/2025.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. 1844. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/ – Acesso em: 26/02/2025.

REVISTA FÓRUM. Bloco Filhos de Gandhy proíbe homens trans de participarem. Revista Fórum, 2025. Disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/2025/2/24/bloco-filhos-de-gandhy-proibe-homens-trans-de-participarem-174709.html. Acesso em: 26 fev. 2025.

*Guilherme Freitas Gomes* Formado em história pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) em 2019. Pós graduado em Gestão Pública pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

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