Fernando Peixoto e a revolução cromática na arquitetura baiana

“Os arquitetos brasileiros fugiram da cor”, disse Ariano Suassuna certa vez. A imagem a que não estamos familiarizados sempre nos perturba, posto que antecipa-se ao pensamento. Ruy Ohtake, um dos raros arquitetos brasileiros que utilizam e dominam as cores (assim como Fernando Peixoto), comentou em uma entrevista que, até a descoberta da Austrália, acreditava-se que todos os cisnes eram brancos, citando um trecho do livro A Lógica do Cisne Negro, de Nassim Taleb.A arquitetura de Fernando Peixoto de Magalhães é indiscutível marco na arquitetura moderna e contemporânea, baiana e brasileira. Representa a policromia retomando sua função e presença na arquitetura.Nos anos 80, percebemos que a paisagem urbana de nossa Salvador começou a surpreender os olhares baianos com pontuais edificações vivamente coloridas. Elas gritavam cromática e despudoradamente em meio à monótona e desbotada paisagem urbana de então. A cor sempre foi elemento fundamental na arquitetura e tem o poder de influenciar o espaço e sua percepção, além de nossas emoções.A arquitetura sempre se utilizou das cores em suas grandes variedades a depender do período da história, da geografia e cultura. Seja da Grécia Antiga ou na arquitetura do continente africano, onde além do aspecto decorativo também é simbólica, ritualística e identificadora de suas raízes.Atualmente, o uso da cor na arquitetura se observa predominantemente na arquitetura comercial, onde ela é utilizada estrategicamente na publicidade, no conforto ambiental, e também em ambientes específicos como hospitais e escolas, por exemplo.Fernando é baiano de Salvador, apaixonado pelo mar e principalmente pela Baía de Todos-os-Santos. É também velejador premiado. Depois de anos trabalhando para construtoras, monta seu escritório e deixa fluir sua criatividade represada.Dominando os conceitos fundamentais da arquitetura, para além do tripé Vitruviano “Utilitas, Firmitas e Venustas”, acrescenta, com seu colorido grafismo, a poética no cotidiano áspero e desumano da nossa paisagem urbana.Fernando conseguiu atingir com seus padrões geométricos uma popularidade que provavelmente não esperava, sendo objeto de discussão, paixão e críticas de teóricos e profissionais de arquitetura. Por outro lado, também encantando crianças, turistas e o homem do povo que se identificam com seus prismas coloridos, de onde resultam comentários singelos, elogiosos e bem-humorados.Nada mais natural a quem se arrisca a dar tamanho salto de criatividade e liberdade em um nicho de racionalismo e sobriedade, numa arquitetura que reproduzia até então modelos europeus advindos da Bauhaus e do modernismo europeu e brasileiro.O fato, gostem ou não, é que Fernando revolucionou a arquitetura baiana e brasileira, autorizando assim, como nunca foi visto na arquitetura ocidental, o uso livre das cores, nas fachadas principalmente. Transformando prismas de concreto e cerâmica em totens urbanos, elementos de forte referência visual que despontam da monotonia paisagística como flores brotando em um campo gramado.Sua arquitetura tem a capacidade de transmitir sensações de surpresa, de alegria e de ludicidade, entre outras, informando à população e aos arquitetos que arquitetura também é arte e, portanto, tem sua autonomia e protagonismo na sinfonia urbana.Suas composições – não musicais, mas visuais – de faixas dinâmicas, são de um grafismo cuidadosamente estudado e calculado, muitas das vezes com sutil ironia, em que deixa transparecer referências do Tromp-L’oeil e do Optical Art.Notam-se influências do Der Stihl holandês e da escola da Bauhaus especificamente do artista plástico, designer gráfico, poeta e arquiteto Theo van Doesburg. Ouso acrescentar o pintor francês Victor Vasarely e o colega Mondrian.HumanizaçãoA arquitetura de Fernando humaniza o desenho industrial, de onde está atrelado na medida em que projeta assentado na racionalização espacial, de custos e na adequação ao mercado. Manipulando calculadamente as relações cromáticas e formais, ele consegue evocar ilusões perceptuais e ambiguidades no olhar do observador.Ele realiza suas composições sobre as fachadas dos seus projetos com total independência, sem relação com a estrutura ou os elementos de ventilação. Esse trabalho é independente, livre, como se dispusesse de uma tela virgem e ali iniciasse sua composição plástica, aspecto conceitual que o torna único na abordagem da cor na arquitetura brasileira.Seu grafismo não se integra à arquitetura, ele soma e sobrepõe-se, apropriando-se dela apenas enquanto suporte para expressar-se livremente. Essa presença chamou a atenção internacional, resultando em um convite para ser o primeiro baiano a representar o Brasil ao lado de Ruy Ohtake na 5ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza de 1991, em participação organizada pelo Ministério das Relações Exteriores. Convite oficial que confirma irrefutavelmente seu valor e ascendência no panorama da arquitetura internacional atual.Dentre suas centenas de obras em Salvador e afora, por questão de espaço na página, citarei apenas algumas, a saber: o Shopping Paralela, onde Fernando teve liberdade de ir além das soluções gráfico/cromáticas e invadindo o perigoso campo do tridimensional, obteve um resultado belo e impactante.Criou um ângulo inesperado em um grande volume prismático de seção quadrado e retilíneo, que se contrapõe a um intrometido supercubo vermelho. Esse elemento visualmente repete seu ângulo de inclinação ao equilibrar-se delicada e improvavelmente na parede lateral do volume frontal, que seria a consequência lógica num estudo de volumetria de fachadas convencional.Logo no grande salão de entrada originalmente nos deparávamos com um imenso domo (talvez o maior da Bahia) central a la Buckminster Fuller nos anos 60, que iluminava um grande canteiro central com uma minifloresta interior, refrescando e trazendo a natureza e sua beleza natural para esse ambiente pasteurizado típico dos shopings.Infelizmente, por razões que desconheço esse jardim foi retirado e colocado um piso de granito, servindo a área para vários fins.Já o projeto da sede da Vale Internacional, na Suíça, foi desenvolvido com o suporte e parceria do escritório suíço Architram Architecture e Urbanisme S.A.do arquiteto Oliver Dépraz, na cidade de St. Prex, cantão de Vaud, Suíça.Com uma área construída de 10.350m2, utiliza avançada tecnologia de automação e comunicação, dentro das rígidas exigências de alto padrão de eficiência energética e conservação da legislação suíça. Fernando manteve sua identidade plástica nas fachadas e no pátio interno, evocando nosso tropicalismo.Atualmente Fernando está concentrado no grande projeto Cidade Verde da Amazônia Azul, projeto audacioso concebido pelo intelectual acadêmico e empresário baiano Joaci Góes, que convidou Fernando para desenvolver e materializar seu conceito.A Cidade Verde da Amazônia Azul é um projeto urbanístico/arquitetônico que incorpora os princípios da Unidade de Vizinhança, desenvolvido por Clarence Perry (1872-19440) em 1929, utilizado também na cidade de Nova York.No Brasil, esses princípios de Unidade de Vizinhança foram utilizado por Lúcio Costa nas asas do Plano Piloto de Brasília e bem antes em Goiânia por Atílio Correa de Lima, em 1933, e ajustado por Armando Augusto de Godoy em 37, entre outras.Enfim, toda a produção arquitetônica e de design do meu velho e querido amigo Fernando Peixoto é resultado de uma mente disciplinada, fundamentada em uma cultura enciclopédica rara, e enriquecida com experiências vividas no exterior, sempre atento à realidade com olhar crítico e bem-humorado, buscando entender e melhorar possíveis falhas. E apesar de grande criatividade, segue seu caminho retilíneo com coerência e rigor em seus misteres, com muita energia para continuar produzindo e nos ofertando o improvável.*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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