Capixaba vira voluntária em campo de refugiados

A jovem deixou o Estado no último dia 16 de janeiro

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Acervo Pessoal

Natural de Vitória, a analista de eventos e conteúdo na Câmara Americana de Comércio no Espírito Santo, Anna Clara Ferreira Souza viveu dias de muito aprendizado e desafio ao ajudar refugiados.A jornada foi iniciada em Lesvos, uma ilha grega localizada a 10 km da costa da Turquia, local que se tornou um dos principais pontos de chegada para refugiados que tentam atravessar o Mar Egeu em busca de segurança na Europa.A jovem de 24 anos deixou o Espírito Santo dia 16 de janeiro e retornou a Vitória no dia 2 de fevereiro. A Tribuna: O que te motivou a fazer esse trabalho?Anna Clara: “Em primeiro lugar, minha fé é o que me move. Como cristã, acredito que o amor e o serviço ao próximo são fundamentais. Esse é o caminho que escolhi seguir, pois creio que uma vida com propósito é aquela que se dedica a ajudar os outros”.”Além disso, fui influenciada pelo exemplo dos meus pais, que sempre foram muito engajados em ajudar o próximo de forma intensa e sincera. Meu pai, que é empresário, também serviu por alguns meses no Afeganistão, atuando com pessoas em situação de vulnerabilidade e crianças afetadas pela guerra”.”A minha trajetória nesse trabalho começou ainda na faculdade. Sou graduada em Relações Internacionais pela UVV, onde iniciei meu envolvimento com questões migratórias ao atuar como voluntária no Núcleo de Apoio aos Refugiados no Espírito Santo (Nuares)”.”Lá, trabalhei com refugiados haitianos e venezuelanos, o que despertou meu interesse por essa área. Posteriormente, fiz mestrado em Diplomacia e Organizações Internacionais na Universidade de Barcelona, minha dissertação foi sobre Refugiados e Empreendedorismo Social e, após concluir, fui trabalhar voluntariamente na Turquia, construindo um campo de refugiados sírios na cidade de Hatay, que foi montado após o terremoto de 2023, o maior da história recente do país”.”Agora, surgiu a chance de atuar como voluntária em Lesvos. Trabalho com a organização All4Aid, que mantém um centro de apoio ao lado do campo de refugiados”.Como é a sua rotina diária?”Dormimos em um pequeno loft perto do trabalho, onde temos cama, banheiro e uma pequena cozinha. Vamos dormir por volta das 21h e acordamos às 6h30. Divido o espaço com outras duas amigas voluntárias brasileiras que vieram comigo”.”Passamos o dia em pé, realizando diversas tarefas, além de precisar nos comunicar constantemente com os refugiados. Como falam outra língua, usamos o Google Tradutor no celular para nos comunicarmos, o que torna o trabalho ainda mais desgastante física, emocional e mentalmente”.É compensador?”Apesar de ser uma rotina muito puxada, é extremamente recompensador. Todos os dias, voltamos para casa com a sensação de dever cumprido, sabendo que conseguimos servir e ajudar pessoas que precisam. No entanto, o desgaste emocional é muito grande”.”Nos primeiros dias, cheguei em casa exausta, tanto fisicamente quanto mentalmente. A situação aqui é extremamente difícil e desoladora”.O que é mais difícil?”É lidar com as histórias que ouvimos diariamente. São cerca de 50 relatos por dia de pessoas que quase morreram, perderam tudo e não têm para onde ir. Há mães separadas de suas famílias, crianças de colo e bebês recém-nascidos vivendo em condições de extrema vulnerabilidade”.De tudo o que viveu até agora, o que mais te emocionou?”Muitas coisas me impactaram. Estar diante de uma realidade tão gritante e desesperadora, principalmente para essas mulheres e crianças, é algo que transforma qualquer um. Mas o que mais me marcou foi ver como elas são tratadas, como a dignidade delas é ignorada”.”Essas pessoas, que vêm de diferentes países e culturas, enfrentaram situações extremas de violência, perseguição e desespero”.”São mães que fugiram para salvar suas filhas, bebês que nasceram já sem um lar, crianças que cruzaram o mar no inverno sem saber o que as esperava. E, ao chegarem aqui, muitas vezes são tratadas apenas como números, como se não tivessem uma história, um passado, uma identidade. Como se não tivessem deixado tudo para trás”.”Me impactou muito perceber como os países ocidentais lidam com a questão do refúgio. Há um olhar frio e distante, como se essas pessoas fossem apenas estatísticas, como se não tivessem sonhos, futuro, desejos. Mas, ao mesmo tempo, vi que elas sonham”.”Conheci pais que fugiram do Afeganistão porque querem que suas filhas estudem, trabalhem, tenham um futuro diferente. Conversei com crianças e adolescentes que, mesmo vivendo nessa incerteza, me diziam: ‘Eu quero ser dentista.’ ‘Eu quero ser médico.’ Isso me impressionou profundamente, porque em meio a tanta miséria e violência ainda há esperança, ainda há sonhos. E, para mim, um dos maiores desejos é ajudar essas pessoas a continuarem sonhando”.”Também me marcou muito o carinho que recebi. Muitas mulheres me convidavam para sentar e tomar chá, compartilhavam suas histórias com lágrimas nos olhos. Me abraçavam, me pediam meu contato, queriam continuar conversando”.E as crianças?”Me impactaram demais. Imaginar que crianças de 2, 3, 4 anos atravessaram o mar no inverno, em botes frágeis, no meio de um mar agitado e desconhecido, sem entender o que estava acontecendo, é algo que me dói muito”.”E, mesmo assim, elas continuam sendo crianças carinhosas, amorosas, cheias de vida. Fiz amizade com muitas delas e pensar em como será o futuro delas é algo que me acompanha o tempo todo”.

Nos braços de Anna, um bebê afegão de 9 meses, na jornada do refúgio

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“Saber que eu vou voltar ao Brasil e que talvez nunca mais veja essas pessoas, que não sei o que será delas, se conseguirão chegar onde desejam, se as crianças terão futuro seguro… Tudo é impactante! Essas dúvidas ficam na cabeça e no coração”.Você recebe algo pelo serviço? Como se mantém aí?”Não. É um trabalho 100% voluntário. Não recebo nada por isso. Para conseguir vir, guardei dinheiro por alguns meses com o que ganhei no meu trabalho no Brasil”.”Minha missão não para aqui: já estou planejando viajar para o Chipre ou para a Jordânia, regiões que recebem um grande fluxo de refugiados”.Análise

“Crise segue sem sinais de reversão”, afirma o especialista.

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“Grandes fluxos de refugiados são resultado de uma combinação de fatores internos e externos. Países com problemas domésticos ligados à sua estrutura política agravados por problemas socioeconômicos costumam gerar instabilidades sociais e políticas.É comum que surjam em países com essas características governos autoritários que, para conseguir se manter no poder, promovem a divisão da população entre o ‘povo’ e os ‘inimigos do povo’.Essa divisão às vezes se torna tão profunda que ocorre uma revolução ou o país sucumbe a uma sangrenta guerra civil, que pode ser intensificada com intervenções externas.O Afeganistão ilustra esse cenário: após a retomada do poder pelo Talibã em 2021, houve repressão a colaboradores da ocupação americana e a restauração de uma interpretação radical da Sharia (leis islâmicas), retirando direitos das mulheres.No Irã, sanções econômicas e descontentamento popular têm provocado protestos, violentamente reprimidos pelo regime. Já a Síria viveu 14 anos de guerra civil.A crise migratória nesses países segue sem sinais de reversão, uma vez que há dúvidas ou ausência de melhoria”.Daniel Carvalho, coordenador de Relações Internacionais e Comércio Exterior da UVV

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