Brincadeira e resistência: o teatro de bonecos preserva a cultura potiguar

A história nos mostra que não faltam formas para que o nordestino se orgulhe de sua criatividade e lide com a vida de uma forma mais leve. Nesse sentido, a cultura popular nordestina, propagada ao longo dos séculos de geração a geração, cumpre relevante papel. No Rio Grande do Norte, uma dessas manifestações resiste ao tempo e se reinventa: é o teatro de bonecos popular, também conhecido como João Redondo ou Calunga.

Memórias, registros e histórias ecoam e se reúnem em obras para celebrar essa arte. É o que acontece no livro “Teatro de Bonecos Popular Potiguar” (Escribas, 2024, R$ 60,00), lançado na última quinta-feira (16). O professor do Departamento de Artes (Deart) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) André Carrico assina a obra.

O teatro de bonecos popular é um patrimônio cultural imaterial do Brasil, inscrito no “Livro de Formas de Expressão”, em 2015, e reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Bem no ano seguinte, em 2016, o professor André veio morar no RN para lecionar na UFRN, e voltou sua pesquisa para os mamulengueiros do estado. Também nomeados como bonequeiros, calungueiros ou brincantes, são eles que manipulam os bonecos nos espetáculos.

De acordo com o pesquisador, esta teria sido a primeira expressão teatral do Brasil. Diante disso, André diferencia teatro de teatralidade, algo que já existia nas performances indígenas e das pessoas escravizadas. Uma peça teatral, segundo ele, tem diálogos e personagens. Contudo, as teatralidades ancestrais “influenciaram também no boneco. Tem muita coisa do teatro popular, do João Redondo, que veio dos africanos e dos indígenas”.

Pesquisa de mamulengueiros potiguares começou em 2016 (Foto: arquivo pessoal/André Carrico)

O primeiro contato de André com essa manifestação cultural foi ainda na década de 1980, no interior de São Paulo, onde fazia um curso de iniciação teatral. “A gente fez uma brincadeira, assim, muito modesta, com papel machê, que não [segue] a tradição mesmo, de madeira”, conta.

Segundo o seu mapeamento, o RN tem cerca de 55 brincantes em atividade. A história do teatro de bonecos em solo potiguar perpassa da capital ao interior do estado. A cerca de 186 km de Natal, a seridoense cidade de Currais Novos, por exemplo, recebeu diversos Encontros de Bonecos e Bonequeiros do RN, que reuníam nomes engajados na defesa da cultura popular. Ainda hoje, o elo entre os mestres e brincantes permanece. 

Brincadeira transcrita em palavras

O professor André Carrico, doutor em Teatro e com pós-doc em Artes da Cena pela Unicamp, diz que sempre trabalhou com teatro popular e já conhecia as manifestações do Nordeste brasileiro. Entretanto, somente em seu pós-doutorado explorou o teatro de bonecos popular. 

O autor de “Teatro de Bonecos Popular Potiguar” explica que essa expressão cultural usa tons de sátira e de deboche em situações da vida cotidiana e popular do nordestino. Uma hipótese dele é a possibilidade de herança dessa manifestação, uma vez que as calungas, bonecas de pano vendidas na feira, são usadas no João Redondo. As tradicionais performances indígenas já tinham bonecas semelhantes.

“Recompensado em um momento como este”, disse o autor (Foto: Junior Deunier)

O que está enfatizado nessas situações são cenas da vida cotidiana do povo, do universo rural, principalmente, do universo da fazenda, da roça, do açude. E essas situações envolvem erotismo, sexualidade, envolvem cenas de trabalho, e muito também da exploração do capitão João Redondo, que representa o patrão, com o seu subalterno, especialmente o protagonista negro da brincadeira, chamado de Baltazar ou Benedito – vamos dizer assim, o nosso herói da história”, compartilha.

Manifestação cultural usa a sátira e o deboche para situações cotidianas (Foto: arquivo pessoal/André Carrico)

Para André, é preciso preservar a cultura. “É através dela que a gente se enxerga, se entende e se identifica. Acho que a ideia [do livro] é mostrar que o brasileiro valoriza as suas manifestações”, frisa. O título pode ser adquirido no site da Editora Escribas e em livrarias de Natal. Conta com dez perfis de brincantes, em cena e um pouco fora dela, e com trechos do estudo teatral e histórico.

São oito anos de pesquisa; vão fazer agora nove anos. Uma pesquisa feita do meu próprio bolso, sem nenhum financiamento e sem bolsa. O próprio livro, foi tudo do meu bolso, as viagens… Então, é uma luta. A gente se sente recompensado em um momento como este”, comemorou, no lançamento de sua obra.

Luciana Amaral: uma história em família

Um dos protagonistas desta rica história foi Mestre Emanoel Amaral (1951-2019), que brincava de João Redondo com seus filhos Luciana e Gabriel, dava oficinas, confeccionava bonecos em material reciclável, era um artista completo e um grande incentivador. 

Quem contou essas e outras características do mestre foi a sua filha Luciana. Formada em Artes Cênicas pela UFRN, ela era uma adolescente com o sonho de ser atriz. Começou junto aos familiares nas toldas dos espetáculos de João Redondo. Hoje, é arte-educadora, mas está afastada de suas atividades.

A família esteve presente no lançamento de “Teatro de Bonecos Popular Potiguar”, uma homenagem a Mestre Emanoel e a tantos outros. “É muito gratificante relembrar as histórias dele desde o início, quando ele começou. Teve até coisas aqui no livro que eu não sabia detalhes, [como momentos] específicos da infância dele”, disse Luciana, enquanto ainda folheava a obra.

Luíza Martins do Amaral, mãe de Mestre Emanoel, fazia bonecas de pano; o filho foi um prolífico bonequeiro; e a neta “brincava muito com as bonecas na infância”. Luciana defende que o RN tem muita gente talentosa no teatro, e afirma que ficou feliz de ver a história sendo registrada.

Mestre Emanoel Amaral e filha na cidade onde participaram de encontros culturais, Currais Novos (Foto: arquivo pessoal/Luciana Amaral)

Ela compartilha a alegria que foi participar dos encontros de mamulengueiros, de eventos culturais e de espetáculos voltados ao público infantil ao lado da família artista. A natalense pontua que, em muitos eventos, era uma das poucas mulheres brincantes. Mas tem uma referência forte nesse sentido: a Mestra Dadi (1938-2021) foi um dos grandes nomes do teatro popular em solo potiguar. Já a caicoense Catarina Araújo de Medeiros, calungueira em atividade, é de uma geração mais recente. 

Depois que o pai morreu, os irmãos Amaral não conseguiram dar retorno às atividades culturais. “A gente ficou meio assim, sabe? As pessoas incentivaram a gente a continuar, mas ficamos meio pra baixo, depressivos. Geralmente, era ele [Mestre Emanoel] quem criava os textos, bonecos, tudo com ele. A gente estava ali apoiando”, relata. Eles atuavam, por exemplo, sendo Tião e Vó Zefa.

Inspirada pelo pai, ela trabalhou como arte-educadora e propulsora do teatro de bonecos popular no Parque da Cidade e no Museu de Cultura Popular, ambos em Natal.

Mestre Emanoel deixou um legado na arte potiguar (Foto: arquivo pessoal/Luciana Amaral)

Orgulhosa, Luciana mostrou fotografias de pinturas que Mestre Emanoel Amaral fez, além de uma boneca chamada Chiquinha, toda vaidosa, com lábios vermelhos pronunciados, feita especialmente para ela. “Ele trabalhava com artes plásticas e artes cênicas, e fazia história em quadrinhos, charges, pinturas e esculturas”, diz Luciana. 

A maquiada e vaidosa boneca Chiquinha (Foto: arquivo pessoal/Luciana Amaral)

A potiguar acredita que esse teatro popular é uma arte presente e diz que observa movimentações na internet em torno dele. Além disso, ainda conhece diversos mestres em atividade. Indicando o Mestre Heraldo Lins, por exemplo, afirma que ele ainda “trabalha muito”. Assim como o nosso próximo entrevistado.

Para Mestre Felipe de Riachuelo, tradição deve ser mantida

Aos 74 anos, José Felipe da Silva, ou Mestre Felipe de Riachuelo, é um guardião da tradição de João Redondo no Rio Grande do Norte. Com fortes opiniões e experiência ímpar, ele se define como um brincante tradicional e muito “raiz”. Tradição é coisa séria quando se conversa com ele.

Ainda adolescente, em Riachuelo, cidade distante 76 km de Natal, foi com brincantes que ele aprendeu o teatro João Redondo. Décadas após começar a brincar, ele vê com certa resistência as mudanças pelas quais o João Redondo passou com o tempo. A história é um ponto central na crítica que ele compartilha.

Eu estou muito crítico, e o teatro de boneco, na minha opinião… Enquanto eu estive na criação do registro do teatro de boneco do Nordeste, no Iphan, em Brasília, plantaram muito a história do salvaguarda, salvaguardar a história, aí eu vejo a história morrendo”, diz.

Ele opina que alguns “intelectuais, os criadores de livro, que entrevistaram todos nós” estão “contra” a história original do João Redondo e veem nela preconceitos. “Na minha opinião, não existe, no teatro, racismo nem preconceito. Existe história”.

O mestre diz que a história contada do jeito original, cheia de sátiras e brincadeiras, provoca mais risos que a forma mais pedagógica que foi adotada pelo teatro atual. Confessa que às vezes tem que se impor limites quando viaja para apresentar fora. Mas na sua comunidade, em Riachuelo, não tem limite algum.

Eu já fiz apresentação, logicamente, dentro dos limites, mas o povo lá, tudo morgado. Agora, onde eu brinco, na minha região, com as safadezas do boneco, é trovoada de risada”, conta o mestre.

Mestre Felipe de Riachuelo, “raiz” e tradicional, também prestigiou o lançamento do livro (Foto: Fernando Azevêdo)

Eu tenho muita coisa pra dizer do João Redondo”. E tem mesmo. Em cerca de meia hora de conversa, é de se admirar as memórias que compartilha. Dos tempos de luta por apoio, dos encontros entre mestres e brincantes, dos tempos passados e até olhares sobre presente e futuro. 

Ele desafia os acadêmicos que lhe contem a história: “Se eles soubessem, não perguntavam a mim”, brinca. Afirma que, no passado, as pessoas não letradas dominavam a manifestação cultural, mas agora é “tudo doutor”.

Venha, professor, você que aprendeu nos livros – eu até chateio as pessoas por isso. Eu quero perguntar a você qual é a diferença da raiz do mulungu [madeira que vem de uma árvore de caule leve e mole, fácil de talhar] pra raiz da Timbaúba pra se fazer um boneco, e você não vai saber. Só quem sabe sou eu. As histórias que eu aprendi só quem sabe sou eu. E se você está dizendo alguma coisa, você aprendeu comigo”. 

A tradição do interior não tem censura e, assim, ele atrai multidões por onde passa. “Lá no meu interior, é o palavrão do boneco mesmo. É a matutagem dele, é a ignorância dele, é a brutalidade dele. Eu faço minha brincadeira do meu jeito. E no meu setor, na minha comunidade, nunca vi pra [botar menos de] 300, 400, 500 pessoas. De pessoas que brincam pedagogicamente, num bota mais de 50”.

Atualmente, o Mestre Felipe está de repouso da brincadeira, porque está aguardando uma cirurgia na mão. Mas ainda viaja, difundindo cultura nordestina Brasil afora. Já deu uma pausa na carreira por falta de apoio anos atrás, mas pessoas como a estudiosa Graça Cavalcanti ajudaram a classe artística, além do mencionado registro no Iphan, em 2015. Assim, surgiram editais de cultura e ele pôde retornar.

As memórias do bonequeiro são sementes de história plantadas no imaginário popular (Foto: arquivo pessoal/André Carrico)

Outra crítica do mamulengueiro é esta: os editais são muito burocráticos e pessoas de gerações como a dele, responsável pela difusão da arte, muitas vezes ficam de fora. Geração esta que até hoje ainda mantém contatos e parceria.

Os encontros regionais pararam por conta da pandemia de coronavírus e não mais retornaram. Polêmicas políticas também atrapalharam a alegria dos brincantes, lamenta Mestre Felipe. 

O mestre  diz acreditar que o teatro de João Redondo vai continuar, mas “a história vai morrer”. Ele espera que não, mas não reflete sobre o futuro com as melhores expectativas.

Hoje, é tudo doutor. É tudo pela universidade, é tudo formado. Peraí, rapaz! Quem formou brincante de João Redondo foi outro brincante com uma mala nas costas. Foi quem ensinou a brincadeira de ontem. Pode chamar um cabra desses e perguntar: você sabe como foi que começou João Redondo?”.

Uma das tradições que ele jamais dispensa é o material dos bonecos, que deve vir do mulungu. Reflete que já perdeu as contas de quantos bonecos já confeccionou. Decerto, ele ainda tem muita história para contar, bonecos para botar na mala e memórias para dividir.

O João Redondo ou Calunga potiguar é diverso e, conforme o teatro de bonecos popular se espalhou pelo Nordeste, e até por outras regiões do Brasil, adquiriu diferentes nomes e nuances, o que é comum na cultura popular nordestina. Mamulengo no Pernambuco, Babau na Paraíba, Casimiro Coco no Ceará e no Maranhão, entre outros nomes. Mundialmente, as marionetes e os fantoches. São mãos e vozes dando show e fazendo espetáculo ao longo dos séculos – de uma história que, felizmente, não vislumbra um fim.

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