Ouvi histórias profundamente comoventes, diz Cate Blanchett após visita a locais afetados por enchentes no RS

A atriz e produtora australiana Cate Blanchett esteve no Brasil pela primeira vez nesta semana para uma missão do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Ela visitou locais e pessoas afetados pelas enchentes históricas que atingiram partes do Rio Grande do Sul em maio deste ano, provocando uma crise humanitária.

“Estou muito interessada na intersecção inegável entre desastres climáticos e o deslocamento forçado de pessoas”, afirmou a atriz em entrevista exclusiva na quarta (18), no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, durante a conexão entre Porto Alegre e Londres.

Premiada com duas estatuetas do Oscar e indicada outras cinco vezes ao prêmio, Blanchett já interpretou seres míticos, monarcas, mulheres comuns e outras extraordinárias. Fora das telas, ela é também embaixadora da boa vontade do Acnur desde 2016, posição em que empresta sua visibilidade para dar destaque às histórias de pessoas forçadas a deixar suas casas em busca de segurança.

Essa população atingiu uma cifra recorde em 2024: 122 milhões de pessoas.
“Quando fui nomeada embaixadora pelo Acnur, meu queixo caiu quando soube que havia 65 milhões de refugiados no planeta. Hoje temos quase o dobro disso. Três em cada quatro refugiados são deslocados para áreas que são muito afetadas pelas mudanças climáticas”, aponta à Folha de S.Paulo.

Durante as enchentes de maio, o Governo do Rio Grande do Sul pediu apoio ao Acnur, que tem larga experiência em ajuda humanitária. A agência da ONU abriu um escritório emergencial no estado, deu treinamento para autoridades locais sobre construção e gerenciamento de abrigos e ofereceu mais 300 casas modulares.
Em outubro, o Rio Grande do Sul se tornou o primeiro estado brasileiro a fechar uma parceria com o Acnur para a construção de um plano estadual de contingência climática.
O tema foi discutido em encontro com o governador Eduardo Leite (PSDB), com quem a atriz também falou de Clarice Lispector (1920-1977). Em setembro, viralizou no país um vídeo em que Blanchett cita a escritora brasileira, nascida na Ucrânia, a quem chama de “incrivelmente genial”.

Como embaixadora do Acnur, Blanchett dedica tempo e dinheiro à causa. Já visitou refugiados em lugares como Mianmar, Jordânia, Líbano, Sudão e Bangladesh, sempre em viagens pagas de seu próprio bolso. Em setembro passado, fez um apelo por políticas de asilo em discurso no Parlamento Europeu.

A atriz diz que sua atuação diante das câmeras e a ação fora delas têm mais pontos em comum do que parecem. “Como embaixadora da boa vontade, minha responsabilidade é testemunhar a experiência individual das pessoas e comunicar essas histórias da melhor forma possível. Parece um clichê, mas, como atriz, eu também sou uma contadora de histórias”, explica.

Para ela, o deslocamento forçado de pessoas deveria ser pano de fundo de mais livros, filmes e peças. “Eu amo fantasia, mas não entendo como a urgência do momento presente não está impregnada em cada história que contamos.”

PERGUNTA – Qual foi a sua missão no Brasil?

CATE BLANCHETT – Eu li sobre as enchentes no Brasil em maio passado e estou muito interessada na intersecção inegável entre deslocamento forçado e desastres climáticos. O Acnur me ofereceu a oportunidade de vir aqui e conhecer os refugiados na região.
É claro que a população brasileira nativa foi extremamente afetada pelas enchentes, mas também o foram os refugiados, que já haviam sido deslocados muitas vezes e que precisam de apoio.

P – O que você testemunhou no Rio Grande do Sul?

CB – Muitas histórias profundamente comoventes. Conheci um homem haitiano no vale do rio Taquari, pai de três filhos, que foi deslocado após o terremoto do Haiti em 2010. Ele é alfaiate e chegou ao Rio Grande do Sul cheio de determinação para reconstruir sua vida, se beneficiou das políticas inclusivas do governo brasileiro e das autoridades locais, encontrou trabalho e comprou uma pequena loja de costura.

Na inundação de setembro de 2023, ele perdeu tudo e se mudou para um terreno mais alto. Economizou, comprou novas máquinas, e, mais uma vez, foi totalmente arrasado pelas enchentes de maio de 2024.

É um homem de habilidades incríveis e profunda resiliência. Mas, enquanto falava comigo, suas mãos tremiam ao segurar o relatório policial de todas as suas roupas que foram saqueadas após as enchentes.

P – Que desafios os eventos climáticos extremos impõem aos refugiados?
CB – Refugiados são incrivelmente resilientes, mas precisam de apoio. Eu me comovi com histórias de mulheres cujos filhos estão traumatizados com as enchentes. Johanna [Moya], uma refugiada venezuelana, me disse que seus três filhos pequenos se escondem embaixo da mesa toda vez que chove forte.

Como mãe de quatro filhos, foi muito angustiante falar com mães que, além do próprio trauma, têm de lidar com seus filhos impactados de maneiras que desafiam a linguagem.
Vi cachorros que ficam de pé em cima de suas casinhas, que antes foram tomadas pelas águas, e geladeiras instaladas nos andares de cima das casas. São símbolos do que está por vir.

P – Como você vê o cenário atual de cooperação internacional para a crise climática? A COP29 [conferência do clima da ONU realizada no último mês, no Azerbaijão] adiou de maneira frustrante e perigosa a necessidade urgente de soluções para a crise climática. Agora olhamos para a COP30 e para o Brasil, que vai sediar o encontro depois de viver esse evento climático catastrófico no sul do país.

CB – É realmente importante que essa tragédia brasileira seja usada para destacar que mesmo comunidades que não são empobrecidas também são impactadas pelas mudanças no clima e seus eventos cada vez mais devastadores.

Também acho que vamos precisar que o setor filantrópico e o setor empresarial considerem investir nessa interseção de deslocamento forçado e vulnerabilidade climática. Será o caminho do futuro.

Estou no conselho do prêmio Earthshot, criado pelo príncipe William, que investe em startups sustentáveis, e estou inspirada com as soluções que estão surgindo de áreas que você pensaria serem relativamente empobrecidas, porque ninguém entende melhor de crise do que as pessoas que foram forçadas a fugir por causa dela.

P – Desde 2016, o número de refugiados quase dobrou. Mais conflitos e guerras eclodiram, fronteiras foram cerradas e eventos climáticos extremos se intensificaram. Como enfrentar esse desafio?

CB – Tento sempre me apegar ao positivo, porque desistir não é uma opção. A primeira coisa que qualquer desastre nos ensina é que tudo está interligado.

Parece ter havido um entendimento nas COPs [conferências do clima das Nações Unidas] de que o deslocamento forçado de pessoas está profundamente ligado ao clima. Então, incluir refugiados na busca de soluções é importante.

Hoje fechamos nossas fronteiras para essas pessoas quando somos coletivamente responsáveis pelas mudanças climáticas. Acredito que os países que pensam poder se isolar hermeticamente de uma crise global coletiva se tornarão cada vez mais irrelevantes.
P – Existem exemplos contrários?

CB – Fiquei muito comovida com as políticas acolhedoras e inclusivas do Brasil em relação a refugiados e solicitantes de asilo. E acredito que países como o Brasil, a Índia e a China se tornarão líderes e impulsionadores da busca por soluções para essa crise. Com isso, se tornarão mais relevantes globalmente do que aqueles países que optarem por fechar suas fronteiras.

P – A Austrália mantém políticas rígidas para migrantes e refugiados, mas ofereceu refúgio a cidadãos de Tuvalu, ilha que está desaparecendo com a subida do oceano. Pessoas deslocadas por questões climáticas são percebidas de forma diferente daquelas que fogem de outros contextos de perigo?

CB – Sim. E isso é desconcertante para mim. Acho que há uma estigmatização e uma politização de pessoas que vêm de certas áreas. Cresci na Austrália quando era um país multicultural. Ver isso se tornar rígido e excluir certas culturas é bizarro.

P – Um discurso seu viralizou no Brasil por mencionar a escritora brasileira, nascida na Ucrânia, Clarice Lispector. Você disse que ela lhe inspira coragem. Como?
CB – Clarice era uma refugiada ucraniana, para começar, o que eu não sabia. Da primeira vez que a li, foi uma relação apenas com sua escrita profunda e poética. E o seu complexo senso de humanidade.

Virou um um ponto de referência para mim, porque ela é curiosa para aprender sobre as coisas que não sabe. E, em sua escrita, tão pronta para reconhecer o que somos como indivíduos. Mas, quando você se perde em um esforço coletivo, você se torna maior e mais significativo.

Sou uma grande admiradora de seu trabalho. Demorou um pouco para encontrá-lo em inglês.
RAIO-X

Cate Blanchett, 55

É atriz e produtora de cinema. Nascida na Austrália, foi premiada com dois Oscar, quatro Globo de Ouro e quatro Bafta (British Academy Film Awards). Desde 2016 é embaixadora da boa vontade pelo Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Presidiu o júri do 77º Festival de Cinema de Veneza, em 2018.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.