“Palavra que define a Doença de Chagas é a negligência”, diz Cássio Meira

A notícia pegou de surpresa o professor e pesquisador baiano Cássio Santana Meira: no último dia 29, ele foi eleito para a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a instituição que reúne os principais cientistas do país, de diferentes áreas de atuação. Negro, nordestino e com apenas 35 anos, Cássio entra para o time seleto, na área de Ciências Biomédicas, na qual vem atuando há cerca de 16 anos, desde que entrou para a Faculdade de Ciências Biológicas da Ufba, em 2008.Para entrar para a associação científica mais prestigiada do país, um pesquisador precisa ser indicado por outro membro e passa pelo crivo dos comitês regionais, que escolhem os representantes finais, em uma disputa acirrada. “Fiquei muito feliz, principalmente pelo fato de ser baiano, pois ainda somos poucos entre os cerca de 900 integrantes da Academia”, afirma Cássio, que disputou com colegas nordestinos e do Espírito Santo.Sua escolha é um reconhecimento para as pesquisas que vem realizando, sobretudo para encontrar novos remédios para combater a Doença de Chagas, transmitida pelo barbeiro, e mal que ainda acomete mais de 6 milhões de pessoas pelo mundo. Nesta entrevista, Cássio fala sobre a importância de entrar para a instituição e do trabalho que realiza no ensino e na pesquisa no Instituto de Tecnologias da Saúde do Senai Cimatec, na área de Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa da Fiocruz e no curso de Ciências Farmacêuticas da Uneb.O que significa para você a eleição para a Academia Brasileira de Ciências?A Academia é a associação de pesquisadores mais prestigiada e importante do Brasil. Os pesquisadores são indicados por outros membros e depois avaliados pelos comitês das regiões, e escolhem os cinco representantes para passar a fazer parte da academia. Para mim foi uma verdadeira surpresa ter sido escolhido para exercer este mandato entre 2025 e 2029. Acho que é um marco para minha carreira científica e um grande sinal de reconhecimento, pois as pessoas que fazem parte da academia são escolhidas a dedo.Como é que a ABC atua?Agora que sou membro, vou ser empossado em uma cerimônia que acontecerá na segunda quinzena de agosto de 2025, mas ainda sem local definido. Existe um fórum de discussões, do qual eu agora faço parte, que funciona para o desenvolvimento científico e educacional, visando a melhoria social do país. Através desse fórum são propostas ações, como organização de congressos e de atuação na sociedade, e dentro da minha expertise eu estarei contribuindo.Esta escolha é um reconhecimento por sua atuação na pesquisa científica. Poderia falar um pouco mais sobre sua trajetória?Hoje eu sou professor da área de Saúde e Medicina Investigativa da Fiocruz e no curso de Ciências Farmacêuticas da Uneb, orientando alunos de mestrado e doutorado. É como se estivesse encerrando um ciclo, no sentido de que eu era aluno, estava em formação, e agora eu formo pessoas. Tenho esse compromisso muito grande com a formação de alunos, principalmente alunos negros, que não têm muita oportundade de entrar nesses programas mais visados na nossa cidade. Em 2020, eu entrei para o Senai Cimatec e meu primeiro foco de pesquisador foi com a Covid-19, criando métodos de diagnósticos, mas hoje voltei para a minha área-mãe, de prospecção de fármacos, que venho pesquisando desde a iniciação científica na graduação, e também no mestrado, doutorado e no pós-doutorado. Trabalho na busca de novos medicamentos para a Doença de Chagas, que é meu alvo maior de interesse, e também para o câncer e doenças inflamatórias de forma geral. Dentre estas três áreas, tenho mais destaque, publicações e prêmios, na utilização de medicamentos com ação dual para controle da Doença de Chagas, quando você consegue matar o parasita, causador da doença, e reduzir a inflamação. Na forma crônica, o grande problema da Doença de Chagas é a inflamação do coração.Quais são os principais fármacos em que você está trabalhando e como eles agem?Eu tenho uma rede de colaboração, que envolve universidades do Brasil e de fora do país, através da qual tenho me associado a pessoas da química, que trabalham com produtos naturais, extraídos de plantas, animais ou até fungos, ou com pesquisadores que trabalham com moléculas sintéticas, desenvolvidas em laboratório. De tudo que já trabalhei, a molécula mais promissora foi a BA5, um derivado semissintético do ácido betulínico, uma molécula natural encontrada em várias espécies de plantas, inclusive aqui no Nordeste, o que era uma condição da pesquisa. O ácido betulínico já é funcional e quando você consegue modificá-lo para gerar novos derivados, consegue gerar moléculas mais ativas. Uma das plantas que trabalhei foi Ziziphus joazeiro, aqui do Nordeste.O que te levou a se dedicar à Doença de Chagas e como ela está presente hoje na nossa sociedade?A principal palavra que define a Doença de Chagas é a negligência. Ela existe, afeta de 6 a 7 milhões de pessoas no mundo, segundo a OMS, mas não tem atenção nem da indústria farmacêutica nem dos países desenvolvidos, que não estão muito preocupados em desenvolver novos medicamentos para a Doença de Chagas, que é endêmica na América Latina. O primeiro mundo não está disposto a resolver, pois não vai ter retorno alto para eles, já que o público que tem a Doença é muito carente. É um problema nosso, então cabe a nós brasileiros nos movimentar em busca de novas formas de tratamento e prevenção. Eu estou atuando no tratamento, já que o medicamento disponível no mercado não tem uma boa eficácia em indivíduos com a doença na fase crônica.Como estão os resultados da pesquisa? Já está próximo da produção de um medicamento?Temos cerca de 15 anos trabalhando com a Doença de Chagas e os resultados são animadores. Já conseguimos executar estudos com seres humanos na parte de terapia celular. Nós temos muitos candidatos e temos resultados que mostram o potencial frente ao fármaco de referência, utilizado hoje na clínica, o benzonidazol.A Doença de Chagas ficou no imaginário como ligada a um Brasil interior e muito pobre. Ainda é assim?Ela não está na mídia. O perfil dos infectados é exatamente este. Estamos agora fazendo um outro estudo no Senai Cimatec, no interior de Pernambuco, no campo do diagnóstico de Doença de Chagas e nossos participantes têm um nível de pobreza muito grande, não sabem ler e não têm celular. E o dinheiro que damos para eles, cerca de R$ 42, eles não usam para lanchar, guardam para levar para a família.Você tem uma vida inteira dedicada à pesquisa. Poderia falar um pouco sobre a essência de ser um pesquisador na Bahia?Sou um pouco sobrecarregado, pois tenho 15 alunos da pós-graduação, entre mestrandos e doutorandos. A vida de pesquisa é uma vida em que você costuma levar trabalho para casa, corrigir dissertações e teses e fazer projetos… No Brasil tudo ainda é mais difícil, porque temos muita competitividade, com pesquisadores de todo o país, então precisamos ter um nível de qualidade muito alto para prosperar. Pesquisa é como se fosse uma grande roda, quanto mais você produz, mais dinheiro você ganha para novas produções. Quem produz pouco não consegue financiamento para novas pesquisas. No geral, há uma pressão muito grande nos pesquisadores brasileiros para se manter ativos na vida da pesquisa. Aqui em Salvador é muito difícil você conseguir um emprego como pesquisador, na verdade este emprego não existe, o que existe são cargos públicos, onde você é obrigado também a ser professor. O Senai Cimatec, apesar de ser de 2002, só implantou a área de saúde a partir de 2020. Fui contratado para ser pesquisador e acabei realizando um sonho, que me permite uma certa liberdade de estudar assuntos que são do meu interesse. Gostaria de destacar também o papel da Fapesb, que é nossa agência estadual de apoio à pesquisa e vem contribuindo para impulsionar as pesquisas aqui no nosso estado.
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